O nascimento da palavra gastronomia é mais fácil de localizar no tempo do que a atividade que ela designa. Empregada pela primeira vez em 1801 por Joseph Berchoux, um autor hoje esquecido, nessa época ela significava "a arte da boa mesa". Os humanos, que inventaram a cozinha antes da agricultura e da pecuária, não esperaram por essa data para se interessar de perto pelo que comiam. O surgimento dessa palavra nos primeiros anos do século XIX também não era fortuita: uma crescente parcela dos franceses começava a tomar consciência então da originalidade de seu patrimônio nesse campo.
Uma fama de longa data
Desde meados do século XVII, na França, a nobreza e seus cozinheiros começaram a renovar os gostos e modos à mesa. Eles foram os únicos na Europa a escolher de maneira tão evidente a busca sistemática da inovação. Sua singularidade logo se mostrou produtiva. O que chama a atenção do historiador é a abundância e a concordância das fontes que atestam essa originalidade francesa. Livros de receitas revelam importantes modificações nas práticas culinárias e alguns manuais de etiqueta atestam mudanças profundas ocorridas na maneira de se portar à mesa.
Por fim, testemunhos literários, memórias ou relatos de viagens, demonstram que em menos de cinqüenta anos, entre 1650 e 1700, os franceses das camadas sociais privilegiadas haviam adquirido a certeza de que a sua maneira de comer era superior à dos outros povos da Europa. O que faz perceber aí não se tratar apenas de uma lamentável prova de chauvinismo é o fato de um grande número de outros testemunhos, escritos por visitantes estrangeiros vindos à França, comprovarem que estes últimos reconhecem uma superioridade francesa nesse campo.
Um século mais tarde, no século XIX, os textos escritos revelam que a Revolução Francesa não mudou grande coisa em matéria de gastronomia, porém o contrário. Na época, era maior o número de franceses convencidos de sua superioridade à mesa. Os visitantes estrangeiros, por sua vez, continuavam se mostrando inclinados a reconhecer o prazer excepcional que sentiam em comer à francesa. Além disso, estes últimos passaram a ser singularmente bem mais numerosos, em decorrência das recorrentes derrotas militares das forças francesas, o que levou um grande número de soldados europeus a visitar a França na qualidade de vencedores. Eles freqüentavam assiduamente os restaurantes, que exaltavam em seguida sem reservas, particularmente no que se refere aos primeiros grandes restaurantes.
Os grandes restaurantes! Essa invenção francesa do final do século XVIII ganhou força no final do século XIX.
Uma nova clientela freqüentava esses restaurantes tendo em mente uma idéia de luxo alimentar reservado até então às mesas privadas de ricos privilegiados. Ao mesmo tempo, as palavras gastronomia e grastrônomos faziam muito pela reputação do que elas designavam, graças, principalmente, a autores como Grimod de la Reynière e Brillat-Savarin.
Originalmente, a gastronomia nada mais é do que essa difusão a um público cada vez mais amplo, no século XIX, de uma arte de bem viver à mesa que havia sido renovada no século XVII, no estreito círculo da nobreza francesa.
Sabores naturais, produtos frescos e elegância à mesa
Mas, o que foi exatamente essa renovação, ocorrida durante o século XVII, que concedeu à gastronomia francesa uma reputação assim tão duradoura?
O espírito de inovação, nessa época, era estimulado pela nobreza. Imitando seu rei, Luís XIV, ela procurava sempre distinguir-se do povo, mas também das outras nobrezas européias. Esse desejo elitista de refinamento gerou um amplo movimento de renovação dos costumes na França.
O abandono dos sabores herdados da cozinha da Idade Média por parte dos cozinheiros franceses situa-se nesse contexto. Eles reduziram drasticamente o uso das especiarias, consideradas cada vez menos como produtos de luxo. Eles pararam de empregar as misturas do doce com o salgado e os sabores agridoces (na Idade Média, o açúcar, produto importado, era considerado uma especiaria). As cozinhas de outros países da Europa, em particular as do leste e do norte, que não passaram por essa renovação, conservam intactos até hoje esses sabores antigos.
Os cozinheiros franceses dos séculos XVII e XVIII também privilegiaram o cozimento, preservando ao máximo o sabor das carnes, o que teve o efeito de estimular o desenvolvimento de um abate de boa qualidade. Eles exigiram dos hortelões legumes frescos e tenros e dos peixeiros um acondicionamento irrepreensível.
Muitos exemplos ainda existentes comprovam essas novas exigências da época: por volta do ano 1680, a nova Horta Real de Versalhes, obra de La Quintinie, entrou em funcionamento. Graças às carroças puxadas a cavalo, que traziam a pesca do Canal da Mancha a grande galope, os peixeiros parisienses estavam em condições de oferecer peixes os mais frescos possível: a rua Poissonnière (peixeira), que fazia a ligação entre as portas do norte de Paris e seu centro, ainda hoje lembra, pelo nome, essa forma particular de abastecimento.
Em suma, se fôssemos resumir numa única frase a grande novidade dessa nova cozinha do século XVII, poderíamos dizer que ela privilegiava os sabores naturais dos produtos e não os dos temperos.
Primeira página do "Cuisinier François", de François Pierre, conhecido por La Varenne, cozinheiro do Marquês de Uxelles. Esse foi o primeiro livro de cozinha a colocar em prática as inovações francesas surgidas no século XVII.
A nobreza também tratava de refinar seus modos à mesa. No final do século XVII e no início do XVIII, generalizou-se a individualização do serviço de mesa: para cada comensal seu conjunto de peças. Algumas delas, como o garfo, era de uso recente, enquanto outras eram reservadas ao serviço dos pratos. Isso também representava uma ruptura com os hábitos herdados da refeição medieval, durante a qual os convivas serviam-se mergulhando as mãos no prato comum a todos e onde cada um compartilhava sua tábua de madeira (tranchoir) com o vizinho imediato.
Ao longo do século XVIII, essa nova forma de convívio favoreceu o surgimento da idéia moderna da refeição ideal. Por um lado, ela é feita antes de mais nada com aqueles cuja companhia nos agrada. Por outro lado, a preferência é dada à elegância à mesa e nela degustam-se alimentos e vinhos procurados pelo primor de sua elaboração. Esse ideal de convívio até hoje é o que almejamos.
Os trunfos da história e da geografia
Por que a gastronomia se desenvolveu na França? Em primeiro lugar, há a história: nos séculos XVII e XVIII, o país é uma das primeiras potências européias em população, riqueza e política externa. Essa situação é propícia às ambições culturais. Ela estimula também fortes tendências hegemônicas, tanto em matéria de cozinha quanto em outros setores. Os debates atuais provocados pela extensão na Europa dos hábitos alimentares norte-americanos demonstram que o problema é eterno!
Em seguida, há a geografia da França. Ela é o mais extenso dos territórios europeus: ela oferece terras produtivas muito variadas, diversos tipos de clima e quatro fachadas marítimas. Um império colonial extenso enriqueceu, durante o século, esse contexto natural já favorecido. Um capital geográfico como esse oferece excelentes possibilidades agrícolas e recursos generosos. A renovação da cozinha descrita acima privilegiava o gosto natural dos produtos e, por isso mesmo, a valorização de suas qualidades. A união desse movimento inovador com essa geografia fecunda deu início a um processo duradouro de estímulos recíprocos entre produtos específicos de cada terra e conhecimentos culinários.
Esse traço duradouro da cultura francesa produz aliás efeitos contraditórios. Muitas vezes, ele gera uma defesa ardorosa por parte dos franceses de suas tradições culinárias, mas também estimula seu entusiasmo para incorporar novidades alimentares vindas de outros países. Ele explica também sua tendência a buscar, algumas vezes de maneira obsessiva, os melhores produtos, mas caracteriza, ao mesmo tempo, seu gosto pela valorização das experiências que possibilitam exaltar os gêneros alimentícios mais comuns.
Os cardápios dos grandes chefs de cozinha franceses de hoje refletem explicitamente essas contradições. Alain Passard, por exemplo, abandonou quase totalmente a cozinha à base de carnes, concentrando-se na alta gastronomia dos legumes, gênero alimentício até então considerado secundário. Ele oferece, por exemplo, uma "alcachofra da Bretanha grelhada, aromatizada com tília" ou "cenouras com laranja e espinafre na manteiga salgada". Por outro lado, agora com o estandarte dos produtos nobres erguido no mais alto nível, Alain Sanderens e Pierre Gagnaire apresentam respectivamente um "‘homard’ [espécie de lagosta com grandes pinças] da Bretanha com licor Bourbon de Madagascar" e "grandes lagostins à manteiga de nozes, com guarnição ‘royale’ de foie gras". Entre esses dois extremos, Alain Dutournier apresenta uma clássica "perdiz vermelha em folha de repolho tenro" ou um saboroso "pernil de ovelha cravado de anchovas"…
A gastronomia francesa de hoje
Neste início de século XXI, a gastronomia na França seria a coisa que melhor se compartilha? Os franceses atribuem sempre uma grande importância à sua alimentação. Mais do que outros povos, eles formalizam suas refeições (horários, rituais, etc.) e, sobretudo, dedicam mais tempo a isso todos os dias. É verdade que um certo número de visitantes estrangeiros na França conhecem melhor a cultura gastronômica do que muitos franceses, mas vale constatar que um francês sempre tem dificuldade de confessar suas lacunas nesse campo. Seria um engano ver nessas confissões difíceis outra coisa além do remorso de herdeiro de um legado mal valorizado. É muito significativo ouvir muitos franceses declararem que a gastronomia é uma refeição feita fora de casa, num restaurante famoso, por exemplo, e que a alimentação doméstica, mesmo que seja boa e tranqüilizadora, em geral situa-se em um nível inferior.
Na França, os modismos desempenham um papel considerável em gastronomia. Alternam-se os recuos pusilânimes aos valores "consagrados" dos produtos e experiências regionais franceses e a paixão tão violenta quanto espontânea pelos mais exóticos sabores. Resumindo, os franceses fantasiam a sua gastronomia tanto quanto a vivem. Essa atitude serve de propulsor para a produção de um discurso gastronômico muito rico. Encontram-se livros, guias, revistas e sites da Internet em profusão, mas a propaganda de boca em boca desempenha um papel considerável. Assim, ocorre que o essencial da conversa de uma refeição fina é dedicado a evocar os pratos degustados na véspera, ou os que serão degustados no dia seguinte…
Produções tradicionais: um patrimônio vivo
Os franceses possuem uma consciência particularmente aguçada do valor econômico e sobretudo cultural de seus produtos da terra. Na França, os poderes públicos vêm animando há alguns anos uma discussão aprofundada a esse respeito. Ela permitiu que se estabelecessem critérios, classificando esses produtos de maneira clara.
Aprendizado e inovação
A transmissão do conhecimento e da experiência é indispensável para a manutenção e o desenvolvimento da gastronomia francesa. Mas o valor dos chefs formados na França (entre os quais muitos estrangeiros) não pode ser medido pela habilidade em reproduzir um repertório francês congelado por toda a eternidade: é a sua capacidade de inovar que mantém sua reputação. É nisso que acredita Alain Ducasse, um dos cozinheiros franceses mais conhecidos fora das fronteiras francesas, que considera a renovação da pedagogia como um objetivo prioritário para o que diz respeito ao conjunto das artes do paladar. Uma convicção que ele pode aplicar como presidente que é do Instituto Francês de Formação e Pesquisa sobre as Artes Culinárias, a Gastronomia e as Terras Produtivas (em francês, IFRAC). Concebido por seus idealizadores como "uma passarela lançada entre o mundo da educação e o da gastronomia, entre os profissionais da alimentação e os jovens estudantes", esse instituto coleta e divulga múltiplas informações tanto em matéria de formação profissional, de receitas e de experiência quanto de estudos históricos e pesquisas científicas sobre o paladar e os sabores.
Se um determinado produto não pode ser transposto de uma região produtiva a outra, por outro lado é evidente que as suas qualidades não podem ser atribuídas unicamente às condições naturais do meio que o viu nascer. Esse meio é responsável por aquela produção apenas porque os homens que nele vivem pacientemente "fabricaram seu território" ao longo dos séculos passados e continuam a fazê-lo ainda hoje.
Terroirs e produtos do terroir
Palavra francesa muito antiga, freqüentemente sem equivalente em outras línguas, o terroir designa classicamente uma extensão limitada de terra considerada segundo o ponto de vista de suas aptidões agrícolas (Dicionário Robert). Geógrafos como Pierre George propuseram uma definição mais precisa ainda da palavra, falando de um conjunto de terras trabalhadas por uma coletividade social unida por laços familiares e culturais, por tradições mais ou menos vivas de defesa comum e de solidariedade de exploração. Com as transformações vividas pela sociedade francesa ao longo do século XX, o terroir tornou-se um valor-refúgio autêntico e o lugar comum de diversas nostalgias e, acima de tudo, é identificado aos produtos que nele se originam, para os quais passa a ser um sinal tangível de qualidade e até mesmo uma verdadeira marca.
Esses produtos tradicionais, chamados de produtos de terroir, dependem portanto, pelo menos, tanto das condições naturais quanto da experiência humana. Tomaremos como prova disso o fato de que as receitas de terroir, emblemáticas das regiões onde nasceram, são, em primeiro lugar e acima de tudo, uma questão de conhecimento, de experiência, como o famoso cassoulet de Castelnaudary, cuja execução depende tanto de produtos muito elaborados preparados antecipadamente, como as carnes em conserva (confites), e de uma habilidade muito particular, que exige um aprendizado longo e minucioso. Da mesma forma, seria totalmente errado fazer dos produtos de terroir criações de sociedades rurais confinadas, voltadas para si mesmas. É verdade que as tradições agrícolas baseiam-se em patrimônios culturais locais, mas elas se nutriram também de aberturas repetidas para o vasto mundo. A inovação "bem temperada" é um elemento de proteção da ruralidade e não uma ameaça. Como é o caso do Piquenchagne da região de Allier, um pão tipo brioche recheado de pera, maçã, ou marmelo pochês num leve xarope, aromatizado com canela, uma especiaria vinda do Oriente.
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Cassoulet de Castelnaudary
Ingredientes: feijão branco da região de Lauragais (sul da França) cozido na água temperada do cozimento do torresmo cortado em quadrados e pés de porco, buquê de ervas e dentes de alho. Depois de escorridos e reservando a água do cozimento, o feijão, o alho e os pés desossados e cortados em pedaços são misturados e dispostos em uma caçarola de barro em camadas alternadas com as seguintes carnes preparadas à parte: ombro, ou lombo de porco conservados na gordura (confit) ou assados, cortados em pedaços grandes, ou ainda costeletas de porco douradas na frigideira; confit de ganso ou pato; lingüiça fresca tostada na frigideira, cortada em pedaços e disposta por último. A água do cozimento reservada é despejada sobre os ingredientes e o conjunto é colocado para cozinhar em fogo médio o tempo necessário para a redução do líquido ao ponto desejado de consistência, rompendo periodicamente a crosta que se forma na superfície para verificar o ponto.
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Finalmente, e isso é um paradoxo, um produto de terroir só se torna verdadeiramente como tal quando passa a ser conhecido e procurado fora da região que o viu nascer. Esta última condição é, ao mesmo tempo, uma boa coisa e uma fonte de graves riscos. Ela é uma boa coisa porque a fama torna-se rapidamente uma garantia de perenidade para um produto tradicional de qualidade. É uma fonte de riscos graves também porque o sucesso faz muitas vezes nascer a vontade de aumentar o ritmo de produção e a qualidade do produto. Essa intensificação traz o risco de fazer com que as qualidades fundamentais, que representavam justamente o valor da produção tradicional, por definição bastante maltusiana, tornem-se insípidas. A busca do equilíbrio num contexto como esse mostra-se portanto delicada. Evidentemente, terroirs e produtos de terroir não são como peças de museu, de status rigidamente definido pelo senso comum. Ao contrário, convém insistir na natureza da sua dinâmica e no fato de pertencerem às espécies vivas. Assim, a defesa dos terroirs e de seus produtos é tanto uma questão de vigilância pela preservação de sua autenticidade, quanto de capacidade de adaptação às evoluções do mundo.
O restaurante "Le Grand Véfour", instalado nas galerias do Palais-Royal desde o século XVIII e ainda hoje considerado uma das melhores mesas de Paris, é o mais antigo restaurante da capital francesa (in: Les Français à la Table, Atlas Historique de la Gastronomie Française, Hachette, 1997).
Intituto Francês de Formação e Pesquisa
http://www.alain-ducasse.com/
http://www.isaveurs.com/
Os vinhos da França - por Pascal Ribéreau-Gayon